segunda-feira, 25 de outubro de 2010

Parte VI – Onde eu Estou


Ouviu vozes distantes. Gritos desesperados de sofrimento a uma altura perturbadora tendiam a aumentar sem parar. Não sabia quanto tempo havia se passado. Sentiu a pele de todo o corpo escaldando como se tivesse em contato direto com a lava de um vulcão e ao mesmo tempo um frio insuportável ficava cada vez mais intenso. Sentiu dores excruciantes distribuídas em todo o corpo, cada vez ficando mais fortes. Sua mente estava à beira da loucura. Era impossível se concentrar em qualquer coisa. Decidiu abrir os olhos e só enxergou dor, sofrimento e chamas imersas em uma escuridão sem fim. Tudo aquilo que seu corpo sentia, agora sua alma também passava a sentir. Por algum motivo nada claro o rapaz fazia um esforço sobrenatural para resistir a aquela situação. E como um milagre, conseguia. Cada segundo era tão longo quanto a idade do mundo, e o rapaz suportou por muitos segundos, até perder a noção de tempo.
Levantou-se com muito custo. Com os pés descalços sobre o chão de azeviche fervilhante, manteve a postura semi-ereta e observou o terror que ainda existia ao seu redor. Lençóis de chamas dançando macabramente de todas para todas as direções, pessoas disformes se contorcendo de dor e sofrimento em cada metro quadrado, uma escuridão suprema fazia com que os piores pensamentos viessem à tona. Mesmo de pé, não se via em diferentes condições daqueles desgraçados. Começou caminhar a esmo enquanto tentava continuar suportando a situação. Pessoas o agarravam pelos pés, mas este fato, estranhamente, só o ajudava.
Um homem alto de pele morena, careca, de barba grossa e quadrada, vestindo um smoking roxo com camisa vermelha e gravata preta veio caminhando lentamente até o rapaz às gargalhadas. Sentindo a eternidade de dor e sofrimento contida nos olhos rubros do homem que sorria para ele, o rapaz, ainda se esforçando de forma descomunal, o encarou de rosto erguido:
- Quem é você? – Perguntou imponente sem tirar os olhos irritados do homem.
- Faz alguma diferença? – Retrucou com outra pergunta entre gargalhadas parecendo adorar a sensação do sofrimento.
Meio encabulado, o garoto ficou pensativo por mais uns instantes e começou a lembrar do acidente, preocupando-se novamente com seus amigos e com possíveis vítimas no caminhão.
- Balzak – Interrompeu o pensamento do garoto, o homem, agora com semblante sério, ainda mais assustador – O que pensa que você é?
- Como assim? – Ajoelhou de dor enquanto perguntava ao homem que só transmitia horror no olhar.
- Olhe a sua volta! – Abrindo os braços e olhando para os lados – Onde você acha que estamos? – Encarou o garoto de cima mostrando os dentes semicerrados.
O rapaz se levantou rapidamente, ignorando toda e qualquer espécie de sofrimento, olhos nos olhos fulminantes do homem que também o encarava e exteriorizou com palavras o que seus olhos há muito diziam:
- No inferno? – Uma mistura de ódio e pavor tomou conta dele, que se encontrava à beira de um estado de choque.
- Mas veja só, até que o queridinho do Lúcifer não é tão burro! – Gargalhou enquanto se virava satirizando o garoto – Agora veja só, esses pobres desgraçados, eles não agüentam o sofrimento do inferno – Apontando com o olhar para as pessoas que gemiam e gritavam em volta deles se contorcendo – Em breve você conhecerá outros que suportam, como você, e alguns que gostam disso, como eu. – Pareceu encerrar o assunto dando as costas ao garoto.
Partiu correndo contra o homem e antes que o alcançasse foi surpreendido por outros dois que o agarraram. Um era magro e tinha a pele escura como chumbo, era mais frio que o próprio gelo e tinha cabelos enormes e ondulados cobrindo toda a cabeça e o rosto. O outro era imenso, musculoso, tinha a pele alva como a neve, o rosto deformado e poucos fios longos de cabelo vermelho. Ambos vestiam trajes negros, rotos e queimados, e pareciam não ter expressão alguma. O rapaz tentou encarar o maior, mas não foi correspondido, voltando seu olhar curioso de raiva para o homem que havia o dado as costas.
- Onde pensa que vai sem me dizer mais nada? – Gritou segurando lágrimas teimosas do olho esquerdo.
- Onde penso que vou? – Respondeu sem se virar com ar de escárnio – Você se vê em condições de obrigar o contrário?
- O que quer dizer com queridinho do Lúcifer? Quem é Balzak? – Continuou a perguntar sem ter esperança de ter respostas.
- Faça as contas seu imbecil! – Ainda sem se virar – Você não morreu e está no inferno, você suporta o inferno, você fala com demônios, vamos lá, não é tão difícil – Virando-se – Suas outras encarnações foram mais tranqüilas. Já escolheu almas melhores meu amigo – Virou-se de frente e seu semblante era de irritação quando começou a gritar – Não é por você que estou fazendo isso mortal insignificante, o único capaz de devolver Lúcifer para o seu lugar e o inferno para nossas mãos está sendo atrapalhado pela persistência dessa sua...- tanto a voz do homem quanto os demais sentidos do garoto foram se perdendo em uma escuridão que preenchia dimensões que o raciocínio do rapaz não era capaz de alcançar. Desmaiou. As palavras da frase sem fim do homem rondaram a cabeça do garoto até que vislumbrou novamente a face dona da voz diabólica gritando com ele:
- Me deixe despertar logo senão acabarei com...
Acordou assustado ficando sentado. Estava em uma sala branca, cheia de luz. Uma janela ao fundo da sala com cortinas persianas abertas. Só era possível ver o céu através dela. Estava em uma cama alta de lençóis brancos, e havia mais três camas como a dele, uma do lado esquerdo e duas do lado direito. Vazias. A porta ficava do lado direito e do lado da sua cabeça. Um tripé do lado esquerdo segurava uma bolsa, cujo equipo levava até seu antebraço esquerdo. Estava com quase todo o corpo enfaixado, sentindo muita dor em todo o corpo. Voltou a se deitar, fechou os olhos e respirou com certo alívio.
- Se sonho ou se real, estou a salvo agora. E eles, como será que estão? – Pensou um pouco alto o rapaz enquanto desenvolvia a prática na qual era mais eficiente, a calma.

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